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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Moradia acessível

Acessibilidade é desafio para idosos que vivem em favelas

Seja na plana Cidade de Deus ou no íngreme Dona Marta, pessoas da terceira idade têm de superar variados obstáculos no cotidiano. A boa notícia é que elas têm conseguido. Mas o aumento da expectativa de vida torna urgente melhorias nessa situação

(Fotos: Mauro Pimentel/Vozerio)

Everaldo Leite trocou a tesoura pela bengala. É com ela que o ex-barbeiro de 80 anos sobe e desce o morro Dona Marta, onde mora. Sete degraus separam o portão de sua casa da sala de estar, no primeiro piso. No segundo andar, 11 degraus acima, há dois quartos. No terceiro piso, a oito degraus de distância, estão o sótão e a "cobertura" com vista para Lagoa. "Vinha mais aqui em cima, mas parei por causa da subida", afirma Everaldo. Para ele, a acessibilidade é um problema que começa na rua e continua em casa.

O ex-barbeiro faz parte de um grupo formado por cerca de 100 mil pessoas. Todas elas têm 60 anos ou mais e vivem em favelas da cidade do Rio de Janeiro, de acordo com o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010. A idade faz com que esses indivíduos se enquadrem na categoria atendida pelo Estatuto do Idoso, que reconhece o seu direito ao lazer e atendimento médico, entre outras políticas. Serviços que, em razão do local onde moram, ficam quase inacessíveis.

"O pior problema aqui no morro são as escadas", conta Everaldo. Já faz 15 anos que ele caminha com dificuldade; também lhe falta firmeza na mão esquerda e em um dos braços. Mas os problemas não o intimidam. Ele mesmo busca seus remédios em Botafogo, marca suas consultas no dentista e faz as compras da casa, que divide com a ex-mulher e Tom, seu gato e "melhor amigo".


Já Maria da Luz Silva sente menos confiança. "Tenho medo de ir a lugares mais distantes, as calçadas ruins atrapalham", conta a moradora da Cidade de Deus, mais conhecida como Dona Xuxa. Com 67 anos, ela ganhou o apelido em função do visual caprichado quando trabalhava no Detran. Há 10 anos, um derrame fez com ela passasse a depender de um andador para se locomover. Além das calçadas mal-conservadas, lixo, becos apertados e carros no meio da rua são alguns dos obstáculos no seu caminho. "Falta espaço para a gente andar", se queixa Nancy Silva, de 82 anos, vizinha de Xuxa na Cidade de Deus.

"Morar sozinho numa favela é um desafio para qualquer idoso", afirma Tarso Mosci, presidente da sessão fluminense da Sociedade Brasileira de Gerontologia e Geriatria. No dia a dia, vencer essa batalha exige uma série de adaptações. Como não consegue subir com muitas sacolas, seu Everaldo vai ao mercado até quatro vezes por semana. Por sorte, algum vizinho solidário quase sempre costuma dividir o peso. "Só quando você passa a depender dos outros é que repara como tem gente que ajuda os mais velhos", conta ele.

"Depois da segurança, a acessibilidade é o maior empecilho na vida do idoso que mora em comunidade", afirma a assistente social Maria de Lourdes Braz. Ela coordena desde 1991 aCasa de Santa Ana, um centro de convivência na Cidade de Deus voltado para terceira idade. Dona Xuxa realiza sessões de fisioterapia no local e Nancy é presidente de honra, após ter se aposentado como a primeira funcionária contratada. Cerca de 150 pessoas são atendidas todo mês pelo centro, que tem a chancela das Nações Unidas e parceria com a universidade americana de Yale.

DIREITOS

Além da acessibilidade, os idosos que vivem em favelas têm dificuldades de exercer outros direitos. Um exemplo é o acesso à saúde. "A maioria das comunidades não tem sequer uma unidade de saúde", afirma Rossino Diniz, presidente da Faferj (Federação das Associações de Favelas do Estado do Rio de Janeiro). Em caso de doença, essas pessoas dependam do transporte público para obter atendimento médico.

Mas o acesso ao transporte também é dificultado, e não só por ônibus pouco acessíveis. "É comum que motoristas de vans não respeitem a gratuidade para idosos", relata Nelson Felix, mestre em Serviço Social e membro do Conselho Regional de Serviço Social do Rio. A regra está prevista no artigo 401 da Lei Orgânica carioca. "E quem precisa de transporte para ir ao hospital não tem tempo de chamar a polícia", complementa Felix.

Dona Nancy Silva, de 82 anos: primeira funcionária e presidente de honra da Casa de Santa AnaO artigo 38 do Estatuto do Idoso também determina que pessoas nessa faixa etária tenham preferência no acesso a 3% das unidades de qualquer conjunto habitacional financiado pelo governo. "Mas a regra raramente é cumprida", diz Felix. Apesar das dificuldades, os idosos que moram em favela mantêm uma vitalidade surpreendente.

Aloísio dos Santos, de 70 anos, e Marieta da Silva, de 86 anos, são um exemplo disso. Os dois frequentam a Casa de Santa Ana e estão há quatro anos numa "conversa", termo da dupla para designar seu relacionamento sério. O casal enfrenta a resistência de familiares, mas não está nem aí para isso. Eles se curtem e querem estar juntos. "Enquanto você tem emoção, você está vivo", resume o idoso.


FUTURO

Seu Everaldo tem na ponta da língua a resposta sobre o que faria pelos idosos que moram em favelas se fosse prefeito. "Colocaria escada rolante no morro. Sei que daria trabalho. Mas, montando aos poucos, dá", diz ele. "Iniciativas como o Teleférico do Alemão, que não funciona quando há mau tempo, atendem melhor os turistas do que os moradores", explica Felix. O certo é que é preciso pensar soluções.

"Vamos ter cada vez mais população idosa nos espaços com grande concentração de camadas populares", afirma Luiz César Ribeiro, coordenador do Observatório das Metrópoles e professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo ele, os principais fatores para isso são a redução no número de nascimentos e o aumento na expectativa de vida dos mais velhos.

De acordo com o IBGE, o estado do Rio terá em 2030 mais idosos do que pessoas com menos de 15 anos. Os mais velhos, que hoje representam menos de 10% da população, serão mais de 15% até lá. E a expectativa de vida ao nascer, que hoje é de 75,8 anos, deve aumentar para 79,4 (saiba mais no quadro ao fim do texto).

"A questão é como vamos levar a essas pessoas o que elas precisam ter", explica Ribeiro. Na opinião de especialistas como o médico Alexandre Kalache, diretor do Centro Internacional da Longevidade (ILC-Brasil) e ex-chefe do Programa de Envelhecimento e Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), a oferta de espaços de convivência, equipamentos de saúde e outros serviços terá que aumentar em número e melhorar em qualidade.

Enquanto isso, idosos como Dona Xuxa, mesmo com dificuldades, vão curtindo o privilégio de ter uma vida prolongada. "Faço meus passeios, vou a casa de amigos e não abro mão de tomar minha cervejinha na esquina.Se a pessoa ficar só em casa, atrofia".

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